29 de dezembro de 2005

Promete-me que as tuas palavras chegarão em silêncio
Que serão da matéria da noite
Promete-me palavras de ar, de saliva ou de sangue
Inteiras e nuas como a alma
Derramadas na pele como luz ou música
Palavras que possa guardar em mim
Como uma memória ou um filho

27 de dezembro de 2005

Desvia os olhos da clareza cortante do que nunca será,
da estridência do sempre por dizer.
Desce depressa todos os degraus.
Abre qualquer porta.
Sai de ti.

15 de novembro de 2005

Sorris com a minha boca -
e imagino que saibas
que, nos teus olhos,
o meu olhar se demora
a ver-me sorrir-te.

21 de outubro de 2005

Havia vento nos versos,
Isto é, na pele.
E o rumor frio do mar -
Talvez o murmúrio dos teus passos,
Ou só a sombra de velas.
Talvez entardecesse numa página.

Havia o murmúrio da pele,
Ou só o rumor frio da página,
Isto é, do mar.
Talvez, a sombra dos teus passos - de velas.
Talvez entardecesse nos versos
E no vento.

Havia a sombra fria do mar
E o rumor dos versos, do vento,
Isto é, de velas.
Talvez o murmúrio da página-
Ou só da pele.
Talvez entardecesse nos teus passos.
Já podes guardar os olhos, arrumar as mãos na gaveta do colo. Desfaz pela última vez o que teceste, e fecha a alma sob o linho sem vincos de ti.

2 de outubro de 2005

Há-de haver em ti restos de um abrigo,
A sombra do lume,
Uma melodia em ruínas.
E uma palavra inteira,
Nascida agora,
Ainda suja de sangue.

1 de outubro de 2005

via-me por ti
e agora sou eu
não a que entrevia
não a que entrevias
agora sou eu
sem reflexo
agora sou só eu

29 de setembro de 2005

Nunca atiraste uma pedra, uma palavra. Talvez saibas que nada quebra esta espessura de cristal. Nada estilhaça o abandono.

27 de setembro de 2005

Amanhã, acompanho-me à saída das horas,
e hei-de existir-me completamente,
ouvindo pulsar o que não sou
sob o túmulo da pele.

18 de setembro de 2005

Abre o dia com cuidado. Aguarda o incêndio das palavras. Cobre-o com o seu lençol de cinza.

16 de setembro de 2005

E quando abres a porta para ouvir a luz, uma ave anoitece as asas em silêncio.
Já acreditei que todos os olhos tinham casa, que todas as páginas tinham ar. Um dia, uma palavra havia de cortar a escuridão e transformar-se em mim.

13 de setembro de 2005

Liberta-te da casa, do solo, do rosto; transporta a espera, o acaso, o esquecimento; finge que há um lugar onde os instantes se desfazem, onde a ânsia adormece.

2 de setembro de 2005

E, de novo, todos os dias.
A alegria dos outros.
A arquitectura volátil do tempo.
De novo, a memória pousa devagar nas horas.

27 de agosto de 2005

Tento atear o silêncio,
Soltar a madrugada,
Seguir todos os trilhos,
Alheia ao rumor do vento,
Ao desbotar da noite,
Aos meus gestos de pedra.

22 de agosto de 2005

Se ao menos pudesse
derramar a voz,
gota a gota,
em silêncio e lume,
desenterrar a alma,
descobrir os restos de mim,
encontrar-me aqui,
traço a traço.

18 de agosto de 2005

Antes, acreditava na geografia da alma,
No desconcerto harmónico do tempo,
Na nudez da voz.
O futuro era o teu nome secreto,
Intacto.
E a memória amanhecia devagar.

4 de agosto de 2005

Nao me digas os dias que correm,
aponta-me a terra
onde te foste nascendo,
os sulcos do vento,
os muros sempre derrubados.
Não me fales:mostra-me a raiz da voz,
a ternura subterrânea
que nunca floresce.

30 de julho de 2005

Viver é mais fácil do que parece:
Basta sorrir de cor,
Sem sangrar,
Acreditar solarmente no amanhã –mesmo que o advérbio e o dia não existam,
E em Deus nosso senhor que nos protege a todos,
Mesmo que também - triunfalmente - não exista.
Basta não acordar o vento
Ou soltar a memória
(Que é o mesmo).
Basta ser sensato,comedido,
E saber que a dor se grita em voz baixa
Ou se abafa na alegria morna dos dias.

4 de maio de 2005

Deve haver uma maneira de quebrar o silêncio, de estilhaçar a redoma das palavras, de encontrar um fio de voz para tecer uma sílaba. Deve haver.

13 de abril de 2005

As rosas abrem na água
No solitário torpor da tarde
Imperceptivelmente
Procuram o sol
Uma última melodia de luz
Antes que anoiteça

De manhã morrem
Desfalecem de sede